Aos poucos fui descobrindo que o espelho reflectia algo diferente da imagem que imaginava de mim próprio. Eu não poderia ser aquilo, ou pelo menos só aquilo. Faltava algo ali, eu possuía traços que se foram aperfeiçoando e não reconheci essa evolução naquela visão distorcida. Estava fadado para grandes cometimentos, reconhecerem a minha singularidade, seria um acto de mera constatação, por todos os que me rodeavam. Ter consciência desta beleza intrínseca e avassaladora não poderia ser desmistificada por uma mera ilusão de óptica. Por alguma razão, os Outros, tornavam mais real esta minha certeza, porque passavam ao largo, sem terem a coragem de se aproximar. Caso contrário, seria um vexame desmesurado a sua incapacidade de traduzirem a minha imagem em palavras. Não se acercando desta minha aura, seria uma forma de se conformarem com a sua nítida debilidade.
Os espelhos, portanto passaram a ser um inimigo que importava declarar guerra. Talvez aproximando-me de um lago de águas cristalinas e isentas de qualquer movimento, fosse a tradução perfeita da minha certeza. De joelhos, inclinei esta obra de Deuses, situada acima dos ombros e deparei-me com algo perturbador. Uma pequena Libélula pousou por instantes nas águas e depositou alguns ovos. Distraído, fiquei assistindo ao desenrolar daquela acção. O tempo foi passando e aqueles ovos deram origem a uma ninfa, um insecto parecido com uma criatura alienígena. Ao descobrir uma planta perto do lago, esta subiu e deu-se uma metamorfose inesperada, transformou-se em algo de muito gracioso. Despiu as vestes repelentes e ao abrir as asas, foi ao encontro de um companheiro. O ciclo de vida prosseguia e eu assistia estupefacto. Interroguei-me perante tal milagre. Se aquela transformação, não seria também exemplo de um pedaço do desenrolar da minha existência?
Narciso, era filho do Deus-rio Cephisus e da ninfa Liriope, um jovem de extrema beleza que se tornou escravo da sua imagem. Estaria eu, errado nas minhas convicções?- Afinal o que pôde assistir naquela imagem reflectida, não foi mais do que um ser distorcido pelas pequenas vibrações, que uma libélula provocou, ao depositar os seus descendentes na superfície do lago. Há quanto tempo, estaria eu, longe da realidade?